Queria começar por apresentar um excerto de um poema de Bertolt Brecht chamado
“Perguntas de um Operário Letrado”:
Quem construiu
Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras? (…)
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras? (…)
E esta é a pergunta a que o Memorial do Convento responde,
dizendo que não foram os reis mas sim o povo que, com o seu sangue e suor,
construiu aquela megalómana obra. Saramago pretende fazer do povo a personagem
principal desta história, passando as figuras régias para um plano secundário e
reduzindo a sua suposta grandeza à dimensão de caricaturas. À semelhança dos
Lusíadas ou da Mensagem, Saramago quer também resgatar estes homens do
esquecimento (libertá-los da lei da Morte, como diria Camões) e reservar-lhes
um lugar na História, para que possam ser reconhecidos pelo mérito que tiveram
na feitura daquela gigantesca obra. E, nisto, o título da obra é importante:
“Memorial” como se fosse um livro de lembranças que evoca a memória destes
homens, que os recorda. A História oficial valoriza normalmente a esfera do
poder, Saramago quase que repõe a verdade, e atribui ao povo e aos mártires o
estatuto de verdadeiros fazedores da História. Saramago, ao resgatar do esquecimento esta massa anónima de pessoas e
as condições sub-humanas em que se construiu o Convento de Mafra, está a
apresentar-nos uma matéria simbólica para reflectir sobre o passado na
perspectiva de dela extrair uma lição moral para o presente e o futuro. Segundo
Croce, um filósofo italiano, “toda a História é contemporânea”, ou seja, a
ideia de que a História é cíclica e, portanto, é necessário entendê-la para
melhor lidarmos com o futuro (uma ideia também presente em Nietzsche, a ideia
do eterno retorno). E é também por esta razão que é preciso evitar o
esquecimento, para que não deixemos que aquelas que foram grandes atrocidades
cometidas entre os chamados irmãos-humanos voltem a acontecer. No caso da
construção do Convento de Mafra, falamos da exploração dos trabalhadores mas
poderemos referir-nos a situações ainda mais graves, e mais recentes na
História da Humanidade, como por exemplo, o Holocausto na Alemanha. É preciso
que os países e as pessoas mantenham acesa a memória do que aconteceu para que
se vejam obrigados a carregar uma cruz, a cruz do seu passado, porque quanto
mais lhes pesarem as suas cruzes, menor será o risco de que certos
acontecimentos voltem a dar-se. Mas que não seja uma lembrança doentia das
coisas, é também necessário saber gerir as memórias de forma saudável, para que
não sejamos absorvidos pelo ressentimento ou pelo rancor, e para que possamos
recomeçar e dar aos outros e a nós próprios uma nova oportunidade.
Há na obra um contraste constante constituído por dois grupos
antagónicos a que se podem chamar: grupo de poder – a aristocracia e o alto
clero – e o grupo do contrapoder – o povo, nomeadamente o povo oprimido. O rei
e a rainha e Blimunda e Baltasar constituem dois pares simbolizadores de duas
vivências do amor completamente diferentes. Baltasar e Blimunda vivem um amor
puro, verdadeiro e até, de certa forma, marginal e transgressor, porque não
obedece aos códigos sociais da época e se basta a si próprio, enquanto o rei e
a rainha são um casal apenas por razões de Estado, têm uma relação meramente
artificial que obedece às regras da corte, que se encontram duas vezes por
semana para cumprir o seu dever, ou seja, oferecer um herdeiro à coroa. Estes
últimos vivem num mundo de ostentação de riqueza e poder, tentando colocar-se
num pedestal, mas Saramago fá-los regressar à sua condição de seres humanos, em
tudo iguais nos seus defeitos e nas suas fraquezas. (e aí poderíamos fazer
referência ao “flato rijo” ou aos escrúpulos morais com que a rainha tem de
viver por ter sonhos de carácter sexual com o seu cunhado). Vivem num chamado “mundo de enganos”, com uma ilusão de
superioridade em relação aos seus súbditos, mas em que toda aquela
magnificência é apenas aparente, é apenas uma máscara, porque afinal tudo
aquilo é vão, tudo aquilo é efémero, já que todas as pessoas, independentemente
da sua condição social, e pelo facto de serem pessoas, se situam a um mesmo
nível perante as vicissitudes da vida, e sobretudo perante a inevitabilidade da
Morte. No Hamlet, na cena em que ele fala com a caveira, que é a caveira do
Yorick (um bobo da corte no tempo em que ele era pequeno), e ele a dada altura
diz-lhe: “Vai ter com a minha dama e diz-lhe que por mais maquilhagem que ponha
na cara, é a este estado que vai chegar”. E, portanto, o Memorial do Convento
também nos diz que é inútil tanta maquilhagem, ou por outras palavras, tanta
ostentação de riqueza e de poder, porque nas grandes questões como a Morte,
somos todos iguais, ou usando um discurso mais bíblico, todos nascemos do pó e
todos ao pó voltamos.
Naquele documento que o stor enviou, com as indicações para esta
apresentação, pedia-se para ter em consideração o Livro de Job, quando se
falasse da ideia de sacrifício, (se
bem se lembram, muito basicamente, conta a história de um homem que persiste e
consegue manter a fé perante as adversidades que lhe são colocadas por Deus), mas
eu gostava de relacionar com um livro que li recentemente que é uma espécie de actualização
do Livro de Job, uma espécie de Livro de Job do século XXI, e que se chama “A
Estrada” de um escritor norte-americano chamado Cormac McCarthy que fala de um
pai e de um filho que, num mundo pós-apocalíptico, completamente devastado por
aquilo que se pensa ter sido um ataque nuclear, feito de cinzas, sem lei, sem
ordem, sem Esperança, sem Deus (pelo menos, na ideia que temos de Deus, como
uma entidade boa), e eles vão em direcção à costa, sem saber se vão encontrar
alguma coisa na costa, fugindo de salteadores, de canibais, passando fome e frio...
Num mundo em que imperasse a razão/lógica, o mais óbvio seria o homem matar o
filho e a seguir suicidar-se, mas eles persistem, continuam, o homem continua a
proteger o filho, sem qualquer objectivo senão o de andar pela estrada. E a
pergunta é porquê? Ele não vai chegar a lado nenhum, não vai encontrar nada de
bom. Mas ele mantém aquela força, aquela fé inabalável (não é uma fé em Deus,
porque já não há Deus, mas acho que uma fé nele próprio e na sua capacidade de
resistência e sobrevivência). Porque mesmo que não haja Deus, é meu dever fazer
o que está certo, porque há uma ética sobre todas as coisas, sobre a lógica e,
sobretudo, sobre a religião, é meu dever continuar a andar e não tomar o
caminho mais fácil e errado que, no caso deste livro, seria o de matar o filho
e matar-se a ele. E, no caso da transportação da pedra, esta é uma forma de
encarar o sacrifício, ou seja, suportando-o, continuando a andar e tentando conservar
aquela centelha de esperança (por muito pequena que seja) numa eventual melhoria
das suas condições de vida. (Uma Pequenina Luz, Jorge de Sena)
João Miguel Aragão
Sem comentários:
Enviar um comentário