segunda-feira, 3 de junho de 2013

Memorial do Convento - Visão pessoal da obra



Queria começar por apresentar um excerto de um poema de Bertolt Brecht chamado “Perguntas de um Operário Letrado”:
Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras? (…)

E esta é a pergunta a que o Memorial do Convento responde, dizendo que não foram os reis mas sim o povo que, com o seu sangue e suor, construiu aquela megalómana obra. Saramago pretende fazer do povo a personagem principal desta história, passando as figuras régias para um plano secundário e reduzindo a sua suposta grandeza à dimensão de caricaturas. À semelhança dos Lusíadas ou da Mensagem, Saramago quer também resgatar estes homens do esquecimento (libertá-los da lei da Morte, como diria Camões) e reservar-lhes um lugar na História, para que possam ser reconhecidos pelo mérito que tiveram na feitura daquela gigantesca obra. E, nisto, o título da obra é importante: “Memorial” como se fosse um livro de lembranças que evoca a memória destes homens, que os recorda. A História oficial valoriza normalmente a esfera do poder, Saramago quase que repõe a verdade, e atribui ao povo e aos mártires o estatuto de verdadeiros fazedores da História. Saramago, ao resgatar do esquecimento esta massa anónima de pessoas e as condições sub-humanas em que se construiu o Convento de Mafra, está a apresentar-nos uma matéria simbólica para reflectir sobre o passado na perspectiva de dela extrair uma lição moral para o presente e o futuro. Segundo Croce, um filósofo italiano, “toda a História é contemporânea”, ou seja, a ideia de que a História é cíclica e, portanto, é necessário entendê-la para melhor lidarmos com o futuro (uma ideia também presente em Nietzsche, a ideia do eterno retorno). E é também por esta razão que é preciso evitar o esquecimento, para que não deixemos que aquelas que foram grandes atrocidades cometidas entre os chamados irmãos-humanos voltem a acontecer. No caso da construção do Convento de Mafra, falamos da exploração dos trabalhadores mas poderemos referir-nos a situações ainda mais graves, e mais recentes na História da Humanidade, como por exemplo, o Holocausto na Alemanha. É preciso que os países e as pessoas mantenham acesa a memória do que aconteceu para que se vejam obrigados a carregar uma cruz, a cruz do seu passado, porque quanto mais lhes pesarem as suas cruzes, menor será o risco de que certos acontecimentos voltem a dar-se. Mas que não seja uma lembrança doentia das coisas, é também necessário saber gerir as memórias de forma saudável, para que não sejamos absorvidos pelo ressentimento ou pelo rancor, e para que possamos recomeçar e dar aos outros e a nós próprios uma nova oportunidade.

Há na obra um contraste constante constituído por dois grupos antagónicos a que se podem chamar: grupo de poder – a aristocracia e o alto clero – e o grupo do contrapoder – o povo, nomeadamente o povo oprimido. O rei e a rainha e Blimunda e Baltasar constituem dois pares simbolizadores de duas vivências do amor completamente diferentes. Baltasar e Blimunda vivem um amor puro, verdadeiro e até, de certa forma, marginal e transgressor, porque não obedece aos códigos sociais da época e se basta a si próprio, enquanto o rei e a rainha são um casal apenas por razões de Estado, têm uma relação meramente artificial que obedece às regras da corte, que se encontram duas vezes por semana para cumprir o seu dever, ou seja, oferecer um herdeiro à coroa. Estes últimos vivem num mundo de ostentação de riqueza e poder, tentando colocar-se num pedestal, mas Saramago fá-los regressar à sua condição de seres humanos, em tudo iguais nos seus defeitos e nas suas fraquezas. (e aí poderíamos fazer referência ao “flato rijo” ou aos escrúpulos morais com que a rainha tem de viver por ter sonhos de carácter sexual com o seu cunhado). Vivem num chamado “mundo de enganos”, com uma ilusão de superioridade em relação aos seus súbditos, mas em que toda aquela magnificência é apenas aparente, é apenas uma máscara, porque afinal tudo aquilo é vão, tudo aquilo é efémero, já que todas as pessoas, independentemente da sua condição social, e pelo facto de serem pessoas, se situam a um mesmo nível perante as vicissitudes da vida, e sobretudo perante a inevitabilidade da Morte. No Hamlet, na cena em que ele fala com a caveira, que é a caveira do Yorick (um bobo da corte no tempo em que ele era pequeno), e ele a dada altura diz-lhe: “Vai ter com a minha dama e diz-lhe que por mais maquilhagem que ponha na cara, é a este estado que vai chegar”. E, portanto, o Memorial do Convento também nos diz que é inútil tanta maquilhagem, ou por outras palavras, tanta ostentação de riqueza e de poder, porque nas grandes questões como a Morte, somos todos iguais, ou usando um discurso mais bíblico, todos nascemos do pó e todos ao pó voltamos. 

Naquele documento que o stor enviou, com as indicações para esta apresentação, pedia-se para ter em consideração o Livro de Job, quando se falasse da ideia de sacrifício, (se bem se lembram, muito basicamente, conta a história de um homem que persiste e consegue manter a fé perante as adversidades que lhe são colocadas por Deus), mas eu gostava de relacionar com um livro que li recentemente que é uma espécie de actualização do Livro de Job, uma espécie de Livro de Job do século XXI, e que se chama “A Estrada” de um escritor norte-americano chamado Cormac McCarthy que fala de um pai e de um filho que, num mundo pós-apocalíptico, completamente devastado por aquilo que se pensa ter sido um ataque nuclear, feito de cinzas, sem lei, sem ordem, sem Esperança, sem Deus (pelo menos, na ideia que temos de Deus, como uma entidade boa), e eles vão em direcção à costa, sem saber se vão encontrar alguma coisa na costa, fugindo de salteadores, de canibais, passando fome e frio... Num mundo em que imperasse a razão/lógica, o mais óbvio seria o homem matar o filho e a seguir suicidar-se, mas eles persistem, continuam, o homem continua a proteger o filho, sem qualquer objectivo senão o de andar pela estrada. E a pergunta é porquê? Ele não vai chegar a lado nenhum, não vai encontrar nada de bom. Mas ele mantém aquela força, aquela fé inabalável (não é uma fé em Deus, porque já não há Deus, mas acho que uma fé nele próprio e na sua capacidade de resistência e sobrevivência). Porque mesmo que não haja Deus, é meu dever fazer o que está certo, porque há uma ética sobre todas as coisas, sobre a lógica e, sobretudo, sobre a religião, é meu dever continuar a andar e não tomar o caminho mais fácil e errado que, no caso deste livro, seria o de matar o filho e matar-se a ele. E, no caso da transportação da pedra, esta é uma forma de encarar o sacrifício, ou seja, suportando-o, continuando a andar e tentando conservar aquela centelha de esperança (por muito pequena que seja) numa eventual melhoria das suas condições de vida. (Uma Pequenina Luz, Jorge de Sena)

João Miguel Aragão

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