terça-feira, 12 de março de 2013


“Eu nunca guardei rebanhos”
Este é o primeiro poema do heterónimo, Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa. É o primeiro de 49 poemas que constituem “O Guardador de Rebanhos” e que segundo Fernando Pessoa este poema foi escrito, na carta a Adolfo Casais Monteiro, quase todo o dia 8 de março de 1914, “o dia triunfal” da sua vida. Esse dia triunfal fora então o dia em que surgiram os três heterónimos de Fernando Pessoa (como o stor mostrou na curta metragem).
Passando ao poema, o poeta apresenta-se como pastor, o poeta da natureza, de olhos ingénuos sempre abertos para as coisas (versos 3,5-6,31-33).
O sujeito poético estabelece com a natureza uma relação de simbiose que se manifesta na forma como “conhece” os seus elementos e se liga a eles “E anda pela mão das estações” Jacinto Prado Coelho diz: “Logo no começo do poema se declara pastor por metáfora. De pastor tem o deambulismo (“eu não tenho filosofia: tenho sentidos”, ”com filosofia não há árvores, há ideias apenas”), o andar constantemente sem destino, absorvido pelo espetáculo da inexaurível variedade das coisas. Anda a seguir passivamente, com o espírito concentrado numa atividade suprema: olhar. Os seus pensamentos não passam de sensações. Vive feliz com os rios e as plantas, gostosamente integrado nas leis do universo.” Oscar Wilde – “Com liberdade, livros, flores e a lua, quem não pode ser feliz?”
v.4-6 Conhecer é diferente de estabelecer, pois conhecer não exprime o estado de espírito
Caeiro surge-nos neste poema como o poeta da objectividade do imediatismo das sensações: v.7-8. Aqui o poeta deseja que os seus versos levem os leitores a imaginá-lo como uma coisa natural, como uma árvore, por exemplo, á sombra da qual se sentavam, quando crianças, cansados de brincar. Também podemos entender a ideia de Eu sou um quadro da paisagem, eu faço parte da paisagem.
v9-10 alguém com estas características não era susceptível que ficasse triste porque a tristeza constitui uma modelação do estado de espírito e alguém assim não tem modelações. O poema resolve esses problemas pois “mas eu fico triste como um por do sol”, logo á partida o por do sol é triste ou é contente? Só é contente ou triste perante os olhos de quem o observa. “para a nossa imaginação”, no entanto imaginação é uma coisa que ele não tem, porque tudo o que ele diz é do domínio do concreto,  então ele automaticamente está-se a excluir desta tristeza. A tristeza do sujeito poético é causada pelo fim do dia, no momento do por do sol, quando a noite cai sobre a natureza, o sujeito poético terá mais dificuldade em ver o que se passa á sua volta e em caeiro, a visão é primordial. (poema II Guardador de Rebanhos, “o meu olhar é nítido como um girassol”) Ainda no verso 9, a conjunção adversativa “mas” chama a atenção para o facto de ser contraditória a tristeza que o sujeito poético vai confessar, pois se ele tem á sua volta tudo aquilo que deseja, como poderá sentir-se triste?



Na 2ª estrofe a tristeza é identificada com sossego, o que funciona como uma espécie de negação da tristeza anteriormente expressa, pois refere-a como positiva ao identificá-la com sossego. Essa tristeza é tranquila, porque tem em si a naturalidade das coisas simples, e está aqui em evidencia a aceitação do real tal como ele se apresenta, sem contestação nem interferência do pensamento.
Nas estrofes 3 e 4 o sujeito poético defende que a recusa do ato de pensar é a via para alcançar a paz e a felicidade, pois quando afirma ter “pena de saber que”(v.22) os seus “pensamentos são contentes”(v.22), o sujeito poético esta a colocar o acento tónico no verbo “saber”(conhecimento que é trazido através do ato pensar). “Se não o soubesse”(v.23), seria completamente feliz, assim é paradoxalmente “contente” e “triste” e a tristeza advém-lhe da consciência de saber. Assistimos então á presença de um oximoro (é uma figura de estilo que harmoniza dois conceitos opostos numa só expressão, formando assim um terceiro conceito que dependerá da interpretação do leitor) contido no verso 24 “contentes e tristes”. Tambem vemos a presença de um pleonasmo (redundância da expressão, enfatizando-a) no v.25 “alegres e contentes” e a comparação expressa no verso 26 “pensar incomoda como andar á chuva”.
Finalmente Caeiro apresenta-se como anti-metafísico, negando o valor ao pensamento v.21-25 o pensamento tem mesmo um valor negativo: se não pensasse os seus versos não teriam nada de tristeza, seriam apenas “alegres e contentes”. “Pensar incomoda como andar á chuva” e foi este incómodo de pensar que Fernando Pessoa nunca conseguiu evitar. Já vimos como a dor de pensar sempre o torturou, inventando muitas saídas para o drama do seu “eu” dividido entre o real e o imaginário, entre o ser e o não ser, tal como em chuva oblíqua. A tentativa mais radical de fugir á dor de pensar foi esta de transferir a sua alma para um poeta bucólico que olha e sente o mundo com a simplicidade com que a criança olha uma flor. Mas nem assim o poeta consegue libertar-se da inteligência que vem sempre toldar a simples alegria de ver: “Os meus pensamentos são contentes./ So tenho pena de saber eu são contentes”, porque assim ficam contentes e tristes. A plena felicidade exige não so o olhar simples de uma criança mas também a sua inconsciência. Não é apenas nisto que o sistema de Caeiro claudica. Como se pode ver, por exemplo no poema V de Guardador de Rebanhos, o poeta não é capaz de dispensar nem o pensamento, nem o raciocínio, nem a inteligência, para nos convencer de que para ele há apenas sensações “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos”. O que podemos concluir é que o poeta ao negar a metafísica, está a construir uma anti-metafisica.
Ao analisar a linguagem e o estilo vejo que existem sinais de contradição no discurso deste poeta, e Jaqueline Seabra observa: “ o poeta se visualiza a si mesmo em termos metafóricos: um pastor, de cajado na mão, guardando seu rebanho. Caeiro é então, como os outros heterónimos, um poeta metáfora” Na realidade a metáfora não esta ausente deste poema, pois o poeta escreve versos num papel que é o seu pensamento, olhando para o seu rebanho ve os seus pensamentos e olhando para os seus pensamentos ve o seu rebanho, donde se conclui que o rebanho é os seus pensamentos, ideias e vice-versa. O quiasma( cruzamento simétrico de rebanho-pensamento, pensamento-rebanho) acentua a expressividade da metáfora. 

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