sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Memória Despertada

    Sento-me a ler o jornal. A primeira página traz a manchete de uma notícia qualquer sobre a queda das acções na bolsa, acompanhada em baixo por uma fotografia de um homem com as mãos levadas à cabeça, olhando desesperado para um ecrã pintado de uma mixórdia indecifrável de números e letras. Com certeza preocupante, não é, no entanto, esta notícia que me prende a atenção. A Kate, sentada ao piano com o antebraço posto na parte lateral do instrumento e os dedos a dançar sobre o teclado, tenta compor. Vai martelando as teclas e anotando na pauta as notas musicais. Com os olhos a correr as palavras e, no entanto, sem ler absolutamente nada, fico a ouvi-la. É um som familiar e simultaneamente perturbador, feito de notas sozinhas envolvidas pelo silêncio; é uma toada aguda que atinge as profundezas da minha alma e se traduz no despertar de uma lembrança adormecida das minhas origens. É uma música profunda que me arranca pela raiz e me traz uma sólida memória da minha irmã, da minha irmãzinha, que ficou lá para trás no tempo, morta. Era ainda muito menina e já tocava piano lindamente. Oiço agora este piano e solicita-me a recôndita recordação da música que tocava no seu quarto, em aprendizagem monótona, e de mim, também criança, no quarto ao lado, a escutá-la. Este som dentro da minha cabeça, tão presente e doce, não chega a ser verdadeiramente a música que a minha irmã tocava, por vezes, ao final da tarde; é antes uma absoluta e irremediável saudade.
    Oiço, atrás de mim, a chuva contra os vidros. Levanto-me, chego-me junto à janela e olho através dela. Lá fora, a cidade mexe-se em plena consternação. Não a vejo, apenas olho na sua direcção. O prédio em frente do outro lado da rua, automóveis parados antes do semáforo e outros a passar com pressa, uma buzinadela a rasgar o silêncio, a luminosidade artificial das placas publicitárias dos cafés e das lojas ao nível do chão, as pessoas com os seus guarda-chuvas coloridos caminhando nos passeios como formigas nos seus carreiros: tudo isto se movimenta sob um pesado manto de chuva. Todas as coisas existem diante dos meus olhos, mas eu não as sinto a existir. Vejo no conjunto destes elementos, não o seu desenho, não os seus contornos, mas o seu leve sorriso a abrir-se-lhe nos lábios, projectado na paisagem. E sou invadido por uma profunda tristeza.

Sem comentários:

Enviar um comentário