Sento-me a ler o jornal. A primeira página traz a manchete de uma
notícia qualquer sobre a queda das acções na bolsa, acompanhada em baixo por
uma fotografia de um homem com as mãos levadas à cabeça, olhando desesperado
para um ecrã pintado de uma mixórdia indecifrável de números e letras. Com
certeza preocupante, não é, no entanto, esta notícia que me prende a atenção. A
Kate, sentada ao piano com o antebraço posto na parte lateral do instrumento e
os dedos a dançar sobre o teclado, tenta compor. Vai martelando as teclas e
anotando na pauta as notas musicais. Com os olhos a correr as palavras e, no
entanto, sem ler absolutamente nada, fico a ouvi-la. É um som familiar e
simultaneamente perturbador, feito de notas sozinhas envolvidas pelo silêncio;
é uma toada aguda que atinge as profundezas da minha alma e se traduz no
despertar de uma lembrança adormecida das minhas origens. É uma música profunda
que me arranca pela raiz e me traz uma sólida memória da minha irmã, da minha
irmãzinha, que ficou lá para trás no tempo, morta. Era ainda muito menina e já
tocava piano lindamente. Oiço agora este piano e solicita-me a recôndita
recordação da música que tocava no seu quarto, em aprendizagem monótona, e de
mim, também criança, no quarto ao lado, a escutá-la. Este som dentro da minha
cabeça, tão presente e doce, não chega a ser verdadeiramente a música
que a minha irmã tocava, por vezes, ao final da tarde; é antes
uma absoluta e irremediável saudade.
Oiço, atrás de mim, a chuva contra
os vidros. Levanto-me, chego-me junto à janela e olho através dela. Lá fora, a
cidade mexe-se em plena consternação. Não a vejo, apenas olho na sua direcção.
O prédio em frente do outro lado da rua, automóveis parados antes do semáforo e
outros a passar com pressa, uma buzinadela a rasgar o silêncio, a
luminosidade artificial das placas publicitárias dos cafés e das lojas ao nível
do chão, as pessoas com os seus guarda-chuvas coloridos caminhando nos
passeios como formigas nos seus carreiros: tudo isto se movimenta sob um pesado
manto de chuva. Todas as coisas existem diante dos meus olhos, mas eu não as
sinto a existir. Vejo no conjunto destes elementos, não o seu desenho, não os
seus contornos, mas o seu leve sorriso a abrir-se-lhe nos lábios, projectado
na paisagem. E sou invadido por uma profunda tristeza.
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