Em Arte e revolução[1],
Richard Wagner aponta a resignação cristã como uma enfermidade civilizacional.
Nesse texto, Wagner afirma o vigor da Arte, atribuindo- -lhe como característica a alegria. Segundo
este autor, à alegria provocada pela arte, enquanto entidade libertadora,
opor-se-á aquilo que ele considera ser “o desprezo-próprio, a repulsa pelo
carácter visível da existência, o horror face à sociedade”. Nesta perspectiva,
Wagner coloca-se num ponto oposto àquele em que se situa o discurso do Eclesiastes,
na medida em que, ao assumir o vigor das acções humanas, ele recusa a ideia de
que tudo esteja à partida concebido por acção divina.
À ideia de que a arte é alegria, corresponde a de que
arte, no sentido de que Wagner se serve, é vida, a vida em si mesma,
enquanto processo vital em permanente evolução e espaço em que se exercita o
carácter festivo e luminoso da existência das coisas. No texto citado, Wagner
considera que a resignação cristã é o mal maior dos homens, elevado mesmo a um
mal civilizacional. Deste modo, para Wagner, o cristianismo impõe uma censura,
impõe limites segundo os quais, ao homem, não é possível o entendimento da
ideia de felicidade terrena. Enquanto contingência, ao homem apenas se permite
o refrear as suas características naturais, a sua condição. Nestes termos, o
homem apenas deve aspirar ao «bem» e ao «belo», sabendo que o contacto com
qualquer destas circunstâncias lhe está vedado enquanto não ascender ao “Reino
dos Céus”. Nesta premissa deverá a vida ser entendida como espaço de
restrições.
Uma das restrições a ter em consideração relaciona-se
com a ideia de aborrecimento. Com efeito, se assumirmos o aborrecimento como
ausência de actividade, motivada pela ideia de que de nada vale fazer seja o
que for, na medida em que nada é susceptível de ser modificado, no sentido
eclesiástico do termo, então, no sentido em que a ela Wagner se refere, a arte
é o contrário de aborrecimento, podendo mesmo conter raízes de felicidade.
Neste caso, a ausência de actividade opõe-se à ideia de vida e, por
conseguinte, à ideia de arte, tal como nos é apresentada por Wagner, visto que,
através da nomeação da vida como circunstância activa, a arte adquire um
carácter susceptível de proporcionar a felicidade, por ser, nas palavras do
autor, o contrário do aborrecimento.
Por outras
palavras, à vida terrena estará reservado, na perspectiva do Eclesiastes, mas também num certo
sentido, de Platão, um lugar especial para o aborrecimento.
Nietzsche, numa passagem do Ecce Homo, apresenta aquilo que podemos considerar como uma outra
das restrições a que me refiro. Rejeitando o remorso[2], por
aquilo que nele pode existir de valor suspensivo das acções do presente,
Nietzsche propõe que só pela actividade se pode pressentir o aroma da
felicidade, porque só desse modo se pode minimizar o efeito do aborrecimento
causado por uma “tranquilidade sem vento”, tal como afirma na Gaia Ciência.
Ao referir-se a remorso, Nietzsche, defende que este
conceito não é susceptível de ser entendido como critério de validação de
acções passadas, na medida em que, para o ser, pressuporia um exercício de
vontade anterior aos actos praticados. Este exercício, porém, para Nietzsche,
como para Wagner, apenas se manifesta em espíritos resignados, capazes de
encontrarem justificação para a sua própria “existência miserável” no
Cristianismo. Rejeitando igualmente esta ideia de resignação cristã,
Nietzsche faz apelo a uma necessidade vital que implica a assumpção de uma
aceitação da vida segundo uma perspectiva dionisíaca.[3]
Segundo Nietzsche, “para «sermos nós mesmos», para
nos colocarmos além do terror e da compaixão, na eterna alegria do devir, a
alegria que encerra também o gozo do aniquilamento”, precisamos de fazer da
vida uma afirmação de vontade. O autor propõe que é pela vitalidade, pelo vigor
que emprestamos à vida que poderemos cumprir o nosso destino trágico, isto é,
que seremos capazes de desafiar os deuses e de pormos à prova a
“inesgotabilidade do devir”.
A “afirmação da vida” a que Nietzsche se refere
remete para a ideia de que a uma possibilidade de aceitação das coisas da vida,
ao homem será sempre possível contrapor novas formas de contornar a sua própria
contingência, nomeadamente a partir do carácter trágico da sua existência. O
facto de agir de olhos fechados no seu mundo não é suficiente para limitar a
sua capacidade de interagir com ele, mesmo que apenas ao nível da sugestão.
O contraponto dionisíaco nietzschiano em relação à
noção de resignação cristã, encontra resposta nas palavras que o autor profere
quando, conforme afirma, se “descreve” e determina aquilo que em si é marca de
vitalidade. Um homem “forte bastante para que tudo se realize com o melhor
proveito para ele” será, então, o homem capaz de iludir o aborrecimento e de
aspirar à felicidade.[4]
Na medida em
que nos apresenta um programa de como usufruir a vida, independentemente
daquilo que possam representar os limites defendidos pelo cristianismo,
Nietzsche vem, no fundo, atribuir uma centralidade diferente aos conceitos de
«além», de «alma», de «espírito», bem como à noção de «alma imortal». Assim
sendo, o conceito de que, para se atingir a imortalidade da alma, se torna
necessário assumir um papel de mártir, o lugar de um sofrimento inerente à
condição humana, é aqui posto em causa através da recuperação de um espírito
dionisíaco, segundo o qual, nas palavras de Nietzsche, “a ideia de «alma», de
«espírito» e, ao fim e ao cabo, ainda a de «alma imortal», foi inventada para
desprezar o corpo, para o tornar doente - «sagrado» - para tratar todas as
coisas que merecem atenção na vida – (...) – com a mais espantosa incúria! Em
vez de saúde, «salvação da alma» - quer dizer uma loucura circular que vai das
convulsões da penitência à histeria da redenção!”[5]
No fundo, aquilo que Nietzsche defende ao falar em
alma, em pecado, em vida, relaciona-se com o facto de a todos estes conceitos
se encontrar associada a ideia de doença, a partir da qual, neste autor, a
fraqueza é susceptível de se converter em força[6].
Acerca do que considera «fatalismo russo», Nietzsche afirma que “estar doente é
propriamente uma forma de ressentimento. Contra tudo isto há um grande remédio,
e um só, e eu chamo-lhe o «fatalismo russo», esse fatalismo sem revolta de que
está impregnado o soldado russo que, depois de queixar-se da dureza da
campanha, acaba por deitar-se em plena neve”.
A vida, sendo assim apresentada, é o lugar onde
ocorre, num sentido global e absoluto, uma evolução capaz de dotar o sujeito de
uma capacidade interna e pessoal de aceder à categoria de ser livre.
De qualquer modo, a ideia de remorso merece uma
atenção particular quando falamos em Nietzsche. Com efeito, se nos recordarmos das
palavras de Bruno Snell, atrás citadas, quando este autor afirma que, “de
acordo com a teoria eudaimonística de
ética, a consciência de culpa prova que a conduta moral pode com segurança
fundar-se numa compreensão requintada e inteligente da felicidade e da
infelicidade”, não será estranho imaginar que ao conceito de remorso se
encontra associado o de culpa. O conceito de uma culpa, cuja consciência permite
estabelecer os limites da felicidade e da infelicidade. Assim sendo, o tom
eufórico de que Nietzsche se serve no Ecce Homo pode ser entendido como
uma espécie de terapia. A dimensão terapêutica do discurso nietzschiano pode
radicar na busca de um conhecimento absoluto de si próprio que vai além de uma
dimensão espiritual. Isto é, Nietzsche apresenta-nos a possibilidade de esse
conhecimento absoluto envolver também tudo aquilo que orgânica e fisicamente o
constitui. Deste modo, a resistência ao remorso que se verifica no Ecce Homo,
resulta numa encenação e ao mesmo tempo numa projecção assumida através de um
tom ascético de tonalidades novas.
A propósito de Nietzsche, Wilhelm Schmid, num artigo
intitulado “La Philosophie
comme art de vivre”[7], afirma que “a mudança de
perspectiva sob a qual surge a arte de viver está ligada a uma reavaliação do
ascetismo; este deixa de ser uma técnica de recolhimento interior, uma negação
do mundo, para se tornar um meio para potencializar a existência”. Por outras
palavras, tal como aqui se afirma , a arte de viver passa a ser entendida, como
um conjunto de aptidões capazes de produzirem uma determinada acção. Neste
sentido, arte de viver implicará uma ideia de vigor e de robustez, perante as
coisas da vida. Uma arte susceptível de proporcionar ao homem uma ideia de
transcendência.
O tom eufórico que Nietzsche adopta, mais do que uma
presunção profética, revela-se como estratégia de um entendimento particular
acerca do mundo e de si próprio e manifesta-se através do modo como ele conta a
sua vida. Mais do que revelar uma efervescência eudaimónica, Nietzsche
apresenta a sua receita para a felicidade e, mais importante, acredita nos seus
efeitos. O tom de que se serve corresponde à manifestação efectiva dessa
crença, revelada nos seus efeitos cénicos de que a tonalidade do discurso
poderá ser um sinal. O ascetismo de Nietzsche, de acordo com Schmid, passa a
ser a condição essencial para ascender ao domínio da liberdade e, neste
sentido, o filósofo torna-se sábio porque é capaz de avaliar as coisas do mundo
e de procurar para elas uma compreensão de um conceito a perseguir.
O tom do discurso nietzschiano resulta, assim, de uma
intenção de criar uma verdade como aquela que os gregos assumiam quando
assistiam à representação de uma tragédia, nos termos em que Giorgio
Colli o afirma:
O espectador da tragédia grega vinha e “conhecia” qualquer coisa mais
acerca da natureza da vida, porque era contagiado pelo interior, investido por
uma contemplação – isto é, por um conhecimento – que existia já antes dele, que
emanava da orquestra e provocava a sua contemplação, confundia-se com ela.[8]
[1]
WAGNER, Richard, A Arte e a revolução, Edições Antígona, Lisboa, 1990,
pp.47-48.
[2]
NIETZSCHE, Friedrich, Ecce Homo, Guimarães Editores, Col. «Filosofia
& Ensaios», Lisboa, 6ª edição, 1997, p.41.
[3] idem,
p.76.
[4] idem,
pp.28-29.
[5] idem,
p.140.
[6] idem.
p. 3.
[7] SCHMID, Wilhelm, «La Philosopihe comme art
de vivre», Magazine littéraire – Hors-série, nº 3, 4º trimestre de 2001,
pp. 44-46.
[8]
COLLI, Giorgio , Escritos sobre
Nietzsche, Relógio D’Água Editores, 2000, pp.18-19. Tradução de Maria
Filomena Molder.
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