segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Culpa e Remorso


Em Arte e revolução[1], Richard Wagner aponta a resignação cristã como uma enfermidade civilizacional. Nesse texto, Wagner afirma o vigor da Arte, atribuindo-  -lhe como característica a alegria. Segundo este autor, à alegria provocada pela arte, enquanto entidade libertadora, opor-se-á aquilo que ele considera ser “o desprezo-próprio, a repulsa pelo carácter visível da existência, o horror face à sociedade”. Nesta perspectiva, Wagner coloca-se num ponto oposto àquele em que se situa o discurso do Eclesiastes, na medida em que, ao assumir o vigor das acções humanas, ele recusa a ideia de que tudo esteja à partida concebido por acção divina.
À ideia de que a arte é alegria, corresponde a de que arte, no sentido de que Wagner se serve, é vida, a vida em si mesma, enquanto processo vital em permanente evolução e espaço em que se exercita o carácter festivo e luminoso da existência das coisas. No texto citado, Wagner considera que a resignação cristã é o mal maior dos homens, elevado mesmo a um mal civilizacional. Deste modo, para Wagner, o cristianismo impõe uma censura, impõe limites segundo os quais, ao homem, não é possível o entendimento da ideia de felicidade terrena. Enquanto contingência, ao homem apenas se permite o refrear as suas características naturais, a sua condição. Nestes termos, o homem apenas deve aspirar ao «bem» e ao «belo», sabendo que o contacto com qualquer destas circunstâncias lhe está vedado enquanto não ascender ao “Reino dos Céus”. Nesta premissa deverá a vida ser entendida como espaço de restrições.
Uma das restrições a ter em consideração relaciona-se com a ideia de aborrecimento. Com efeito, se assumirmos o aborrecimento como ausência de actividade, motivada pela ideia de que de nada vale fazer seja o que for, na medida em que nada é susceptível de ser modificado, no sentido eclesiástico do termo, então, no sentido em que a ela Wagner se refere, a arte é o contrário de aborrecimento, podendo mesmo conter raízes de felicidade. Neste caso, a ausência de actividade opõe-se à ideia de vida e, por conseguinte, à ideia de arte, tal como nos é apresentada por Wagner, visto que, através da nomeação da vida como circunstância activa, a arte adquire um carácter susceptível de proporcionar a felicidade, por ser, nas palavras do autor, o contrário do aborrecimento.
 Por outras palavras, à vida terrena estará reservado, na perspectiva do Eclesiastes, mas também num certo sentido, de Platão, um lugar especial para o aborrecimento.
Nietzsche, numa passagem do Ecce Homo, apresenta aquilo que podemos considerar como uma outra das restrições a que me refiro. Rejeitando o remorso[2], por aquilo que nele pode existir de valor suspensivo das acções do presente, Nietzsche propõe que só pela actividade se pode pressentir o aroma da felicidade, porque só desse modo se pode minimizar o efeito do aborrecimento causado por uma “tranquilidade sem vento”, tal como afirma na Gaia Ciência.
Ao referir-se a remorso, Nietzsche, defende que este conceito não é susceptível de ser entendido como critério de validação de acções passadas, na medida em que, para o ser, pressuporia um exercício de vontade anterior aos actos praticados. Este exercício, porém, para Nietzsche, como para Wagner, apenas se manifesta em espíritos resignados, capazes de encontrarem justificação para a sua própria “existência miserável” no Cristianismo. Rejeitando igualmente esta ideia de resignação cristã, Nietzsche faz apelo a uma necessidade vital que implica a assumpção de uma aceitação da vida segundo uma perspectiva dionisíaca.[3]
Segundo Nietzsche, “para «sermos nós mesmos», para nos colocarmos além do terror e da compaixão, na eterna alegria do devir, a alegria que encerra também o gozo do aniquilamento”, precisamos de fazer da vida uma afirmação de vontade. O autor propõe que é pela vitalidade, pelo vigor que emprestamos à vida que poderemos cumprir o nosso destino trágico, isto é, que seremos capazes de desafiar os deuses e de pormos à prova a “inesgotabilidade do devir”.
A “afirmação da vida” a que Nietzsche se refere remete para a ideia de que a uma possibilidade de aceitação das coisas da vida, ao homem será sempre possível contrapor novas formas de contornar a sua própria contingência, nomeadamente a partir do carácter trágico da sua existência. O facto de agir de olhos fechados no seu mundo não é suficiente para limitar a sua capacidade de interagir com ele, mesmo que apenas ao nível da sugestão.
O contraponto dionisíaco nietzschiano em relação à noção de resignação cristã, encontra resposta nas palavras que o autor profere quando, conforme afirma, se “descreve” e determina aquilo que em si é marca de vitalidade. Um homem “forte bastante para que tudo se realize com o melhor proveito para ele” será, então, o homem capaz de iludir o aborrecimento e de aspirar à felicidade.[4]
 Na medida em que nos apresenta um programa de como usufruir a vida, independentemente daquilo que possam representar os limites defendidos pelo cristianismo, Nietzsche vem, no fundo, atribuir uma centralidade diferente aos conceitos de «além», de «alma», de «espírito», bem como à noção de «alma imortal». Assim sendo, o conceito de que, para se atingir a imortalidade da alma, se torna necessário assumir um papel de mártir, o lugar de um sofrimento inerente à condição humana, é aqui posto em causa através da recuperação de um espírito dionisíaco, segundo o qual, nas palavras de Nietzsche, “a ideia de «alma», de «espírito» e, ao fim e ao cabo, ainda a de «alma imortal», foi inventada para desprezar o corpo, para o tornar doente - «sagrado» - para tratar todas as coisas que merecem atenção na vida – (...) – com a mais espantosa incúria! Em vez de saúde, «salvação da alma» - quer dizer uma loucura circular que vai das convulsões da penitência à histeria da redenção!”[5]
No fundo, aquilo que Nietzsche defende ao falar em alma, em pecado, em vida, relaciona-se com o facto de a todos estes conceitos se encontrar associada a ideia de doença, a partir da qual, neste autor, a fraqueza é susceptível de se converter em força[6]. Acerca do que considera «fatalismo russo», Nietzsche afirma que “estar doente é propriamente uma forma de ressentimento. Contra tudo isto há um grande remédio, e um só, e eu chamo-lhe o «fatalismo russo», esse fatalismo sem revolta de que está impregnado o soldado russo que, depois de queixar-se da dureza da campanha, acaba por deitar-se em plena neve”.
A vida, sendo assim apresentada, é o lugar onde ocorre, num sentido global e absoluto, uma evolução capaz de dotar o sujeito de uma capacidade interna e pessoal de aceder à categoria de ser livre.
De qualquer modo, a ideia de remorso merece uma atenção particular quando falamos em Nietzsche. Com efeito, se nos recordarmos das palavras de Bruno Snell, atrás citadas, quando este autor afirma que, “de acordo com a teoria  eudaimonística de ética, a consciência de culpa prova que a conduta moral pode com segurança fundar-se numa compreensão requintada e inteligente da felicidade e da infelicidade”, não será estranho imaginar que ao conceito de remorso se encontra associado o de culpa. O conceito de uma culpa, cuja consciência permite estabelecer os limites da felicidade e da infelicidade. Assim sendo, o tom eufórico de que Nietzsche se serve no Ecce Homo pode ser entendido como uma espécie de terapia. A dimensão terapêutica do discurso nietzschiano pode radicar na busca de um conhecimento absoluto de si próprio que vai além de uma dimensão espiritual. Isto é, Nietzsche apresenta-nos a possibilidade de esse conhecimento absoluto envolver também tudo aquilo que orgânica e fisicamente o constitui. Deste modo, a resistência ao remorso que se verifica no Ecce Homo, resulta numa encenação e ao mesmo tempo numa projecção assumida através de um tom ascético de tonalidades novas.
A propósito de Nietzsche, Wilhelm Schmid, num artigo intitulado “La Philosophie comme art de vivre”[7], afirma que “a mudança de perspectiva sob a qual surge a arte de viver está ligada a uma reavaliação do ascetismo; este deixa de ser uma técnica de recolhimento interior, uma negação do mundo, para se tornar um meio para potencializar a existência”. Por outras palavras, tal como aqui se afirma , a arte de viver passa a ser entendida, como um conjunto de aptidões capazes de produzirem uma determinada acção. Neste sentido, arte de viver implicará uma ideia de vigor e de robustez, perante as coisas da vida. Uma arte susceptível de proporcionar ao homem uma ideia de transcendência.
O tom eufórico que Nietzsche adopta, mais do que uma presunção profética, revela-se como estratégia de um entendimento particular acerca do mundo e de si próprio e manifesta-se através do modo como ele conta a sua vida. Mais do que revelar uma efervescência eudaimónica, Nietzsche apresenta a sua receita para a felicidade e, mais importante, acredita nos seus efeitos. O tom de que se serve corresponde à manifestação efectiva dessa crença, revelada nos seus efeitos cénicos de que a tonalidade do discurso poderá ser um sinal. O ascetismo de Nietzsche, de acordo com Schmid, passa a ser a condição essencial para ascender ao domínio da liberdade e, neste sentido, o filósofo torna-se sábio porque é capaz de avaliar as coisas do mundo e de procurar para elas uma compreensão de um conceito a perseguir. 
O tom do discurso nietzschiano resulta, assim, de uma intenção de criar uma verdade como aquela que os gregos assumiam quando assistiam à representação de uma tragédia, nos termos em que Giorgio Colli o afirma:

O espectador da tragédia grega vinha e “conhecia” qualquer coisa mais acerca da natureza da vida, porque era contagiado pelo interior, investido por uma contemplação – isto é, por um conhecimento – que existia já antes dele, que emanava da orquestra e provocava a sua contemplação, confundia-se com ela.[8]








[1] WAGNER, Richard, A Arte e a revolução, Edições Antígona, Lisboa, 1990, pp.47-48.
[2] NIETZSCHE, Friedrich, Ecce Homo, Guimarães Editores, Col. «Filosofia & Ensaios», Lisboa, 6ª edição, 1997, p.41.
[3] idem, p.76.
[4] idem, pp.28-29.
[5] idem, p.140.
[6] idem. p. 3.
[7] SCHMID, Wilhelm, «La Philosopihe comme art de vivre», Magazine littéraire – Hors-série, nº 3, 4º trimestre de 2001, pp. 44-46.
[8] COLLI, Giorgio, Escritos sobre Nietzsche, Relógio D’Água Editores, 2000, pp.18-19. Tradução de Maria Filomena Molder.

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