A
fase formalista atingida em Itália, e também na Inglaterra e na França, teve
entre nós grande generalização e duração, porque a favoreceram circunstâncias
histórico-culturais apenas semelhantes às que encontrou em Espanha. Por um
lado, o pensamento peninsular foi subordinado a diretrizes que o acautelavam
contra todas as curiosidades e todos os problemas que pudessem trazer
perturbações à unanimidade da ortodoxia, com dura intransigência e aterradores
processos defendida pela Inquisição. Por outro lado, no ambiente espiritual de
tal modo fechado a infiltrações estrangeiras, compreende-se nada ocorresse de
excitante para a vida intelectual numa Pátria e numa Corte sobretudo
preocupadas com os problemas militares e económicos, tanto mais urgentes quanto
era a própria existência delas que os impunha. (…)
Daí
resultou que a literatura de ficção, e sobretudo a poesia, se mantiveram
distantes e alheias. Pode dizer-se que regressou à sua categoria de atividade
lúdica, de mero entretenimento, como
o fora para os poetas dos Cancioneiros medievais
e a maior parte dos do Cancioneiro Geral,
de Garcia de Resende.
Teoriza-a
D.Francisco Manuel de Melo, seu cultor, como «lição não própria de sesudos, mas
de mancebos, damas e ociosos…»; e acrescenta que «se funda em dois pólos, que
são o amor e a ociosidade». Por isso mesmo, a concluir tanto do que sobre ela
pensa, como do modo como a pratica, é a poesia, para este autor como para a sua
época, que ninguém melhor representa, um jogo, um entretenimento, um prazer da
imaginação sensual ou da inteligência engenhosa. Exlui-se dela não só a
gravidade da preocupação social, da comoção religiosa, mas até as efusões da
emoção pessoal. Ela deve ser dirigida à inteligência como objeto de subtil
exercício, e à memória, para fidalgo ornamento dos mais desocupados. Quase nada
tem que ver com o coração, de cujas dores mais profundas faz encantadoras
charadas, artificiosas filigranas verbais. Ela deve ser, do ponto de vista formal,
tão complicada e galante como as boas maneiras de sala, ou tão excessiva de
luxos ornamentais como a arquitetura, a indumentária, o próprio culto religioso
do tempo. Tudo calculado, desde o recorte da frase, até aos movimentos da
paixão. Em tudo a preocupação do arranjo, do enfeite, do jogo, do artigo, até
lá onde mais a aparência de sinceridade ou a real gravidade do tema parece
deveriam suscitar a naturalidade e a verdade da forma por que se traduzisse.
A
poesia seiscentista é comummente chamada gongórica,
como gongórica se chamou toda a
escola literária que domina o século. Tal designação pode induzir, e a cada
passo induz, no erro de se considerarem como influenciados por Gôngora trechos
em que nem a sua técnica nem o seu espírito se projetam – e ainda no erro de
englobar na mesma categoria atitudes e processos diferentes ao ponto de se
oporem. (…)
Duas
atitudes diferente, dois diferentes processos: a atitude sensual de rebusca do mais pulcro e fulgurante para o
encanto dos olhos; a atitude intelectual,
que formula o conceito engenhoso, para deliciado pasmo do espírito dialético.
O
primeiro trecho não tem de ser claro; basta-lhe deslumbrar a imaginação visual
com o coruscante jogo das imagens. Ao segundo cumpre que seja inteiramente
inteligível, ainda que subtil, porque todo o seu preciosismo está no rebuscado
da construção dialética. (…)
Mas
cultismo e conceptismo são duas expressões de um conceito de poesia
fundamentalmente idêntico e que se integra no estilo da época barroca: o que a
reduz a uma atividade puramente lúdica.
Não exprime a vida; distrai da vida.
Quando muito, sobrepõe ao plano da
realidade o plano do ideal, construído com o que naquela haja de mais
famoso e puro, fulgurante e nobre, e para ele perpetuamente provoca a evasão da
sensibilidade, da imaginação e da inteligência. De qualquer modo, é um jogo,
que tem no puro gozo estético toda a sua finalidade. Jogo de palavras, faiscante de graciosos trocadilhos ou equívocos; jogo de imagens – as imagens de variado
tipo com que se aformoseia, se transfigura a realidade; jogo de construções, com que
se organiza a frase e se molda o pensamento dentro de modelos predeterminados –
simetrias, paralelismos, cruzamentos, antíteses, alternâncias, enumerações e
suas repetições; jogo de conceitos –
os conceitos subtilizados pelos hábitos escolásticos, que os substituíam à
observação e à experiência, com as quais lá fora se começava a renovação de
toda a vida intelectual.
Hernâni Cidade, A
Poesia Cultista e Conceptista
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