quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Formalismo seiscentista, como consequência da repressão ideológica


A fase formalista atingida em Itália, e também na Inglaterra e na França, teve entre nós grande generalização e duração, porque a favoreceram circunstâncias histórico-culturais apenas semelhantes às que encontrou em Espanha. Por um lado, o pensamento peninsular foi subordinado a diretrizes que o acautelavam contra todas as curiosidades e todos os problemas que pudessem trazer perturbações à unanimidade da ortodoxia, com dura intransigência e aterradores processos defendida pela Inquisição. Por outro lado, no ambiente espiritual de tal modo fechado a infiltrações estrangeiras, compreende-se nada ocorresse de excitante para a vida intelectual numa Pátria e numa Corte sobretudo preocupadas com os problemas militares e económicos, tanto mais urgentes quanto era a própria existência delas que os impunha. (…)
Daí resultou que a literatura de ficção, e sobretudo a poesia, se mantiveram distantes e alheias. Pode dizer-se que regressou à sua categoria de atividade lúdica, de mero entretenimento, como o fora para os poetas dos Cancioneiros medievais e a maior parte dos do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende.
Teoriza-a D.Francisco Manuel de Melo, seu cultor, como «lição não própria de sesudos, mas de mancebos, damas e ociosos…»; e acrescenta que «se funda em dois pólos, que são o amor e a ociosidade». Por isso mesmo, a concluir tanto do que sobre ela pensa, como do modo como a pratica, é a poesia, para este autor como para a sua época, que ninguém melhor representa, um jogo, um entretenimento, um prazer da imaginação sensual ou da inteligência engenhosa. Exlui-se dela não só a gravidade da preocupação social, da comoção religiosa, mas até as efusões da emoção pessoal. Ela deve ser dirigida à inteligência como objeto de subtil exercício, e à memória, para fidalgo ornamento dos mais desocupados. Quase nada tem que ver com o coração, de cujas dores mais profundas faz encantadoras charadas, artificiosas filigranas verbais. Ela deve ser, do ponto de vista formal, tão complicada e galante como as boas maneiras de sala, ou tão excessiva de luxos ornamentais como a arquitetura, a indumentária, o próprio culto religioso do tempo. Tudo calculado, desde o recorte da frase, até aos movimentos da paixão. Em tudo a preocupação do arranjo, do enfeite, do jogo, do artigo, até lá onde mais a aparência de sinceridade ou a real gravidade do tema parece deveriam suscitar a naturalidade e a verdade da forma por que se traduzisse.
A poesia seiscentista é comummente chamada gongórica, como gongórica se chamou toda a escola literária que domina o século. Tal designação pode induzir, e a cada passo induz, no erro de se considerarem como influenciados por Gôngora trechos em que nem a sua técnica nem o seu espírito se projetam – e ainda no erro de englobar na mesma categoria atitudes e processos diferentes ao ponto de se oporem. (…)
Duas atitudes diferente, dois diferentes processos: a atitude sensual de rebusca do mais pulcro e fulgurante para o encanto dos olhos; a atitude intelectual, que formula o conceito engenhoso, para deliciado pasmo do espírito dialético.
O primeiro trecho não tem de ser claro; basta-lhe deslumbrar a imaginação visual com o coruscante jogo das imagens. Ao segundo cumpre que seja inteiramente inteligível, ainda que subtil, porque todo o seu preciosismo está no rebuscado da construção dialética. (…)
Mas cultismo e conceptismo são duas expressões de um conceito de poesia fundamentalmente idêntico e que se integra no estilo da época barroca: o que a reduz a uma atividade puramente lúdica. Não exprime a vida; distrai da vida. Quando muito, sobrepõe ao plano da realidade o plano do ideal, construído com o que naquela haja de mais famoso e puro, fulgurante e nobre, e para ele perpetuamente provoca a evasão da sensibilidade, da imaginação e da inteligência. De qualquer modo, é um jogo, que tem no puro gozo estético toda a sua finalidade. Jogo de palavras, faiscante de graciosos trocadilhos ou equívocos; jogo de imagens – as imagens de variado tipo com que se aformoseia, se transfigura a realidade; jogo de construções, com  que se organiza a frase e se molda o pensamento dentro de modelos predeterminados – simetrias, paralelismos, cruzamentos, antíteses, alternâncias, enumerações e suas repetições; jogo de conceitos – os conceitos subtilizados pelos hábitos escolásticos, que os substituíam à observação e à experiência, com as quais lá fora se começava a renovação de toda a vida intelectual.

Hernâni Cidade, A Poesia Cultista e Conceptista

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