Ilusão e Crise de Representatividade
Tenho
dezassete anos. Dentro de poucos meses, poderei votar pela primeira vez e assim
participar, finalmente e de forma activa, na vida política nacional. Quero
dizer, poderei iludir-me disso, de que desempenho um papel importante no
desenrolar dos acontecimentos políticos do meu país, já que o meu voto será um
instrumento meramente formal de participação na democracia e eu, como cidadão e
eleitor, não terei verdadeiramente poder algum. O voto serve apenas para que se
possa dizer que o povo representa um papel real e efectivo nas decisões
políticas do país, quando na realidade não representa. O povo deixou de ser –
se é que alguma vez o chegou a ser – a personagem principal desta história.
Todas as decisões importantes são tomadas num círculo político muito restrito;
tudo isto se passa acima das nossas cabeças. Existe hoje um enorme fosso entre
o poder político e o eleitorado. Os políticos são eleitos e, assim que chegam aos
cargos que ambicionavam, esquecem-se completamente de quem os elegeu, daqueles
a quem tinham feito promessas e a quem devem servir. Esquecem-se das pessoas e
dos seus problemas reais e passam a olhar exclusivamente para os números. Governam
até com uma certa prepotência, porque o fazem conforme lhes apraz e não há nada
que possamos fazer em relação a isso, uma vez que eles têm toda a legitimidade
democrática para lá estarem, já que fomos nós – o povo - que os elegemos. Há
cerca de uma semana atrás, na manifestação apartidária diante do Palácio de
Belém aquando da reunião do Conselho de Estado, Catarina Martins, do Bloco de
Esquerda, que, ao contrário do que seria suposto, também se encontrava
presente, falava para a televisão, enquanto uma manifestante lhe gritava ao
ouvido: “São todos iguais! São todos iguais!”. Ora, assiste-se hoje em Portugal
a uma grande crise de representatividade, o povo não se revê nos políticos que
o governam. Existe um grande descontentamento em relação a toda a classe política,
da direita à esquerda, da esquerda à direita. Não existem boas alternativas. Não
vou entrar na demagogia daqueles que pedem a demissão de toda a classe política
porque – dizem eles – são todos um bando de assaltantes. Não se conhece
democracia sem partidos políticos e, por isso, julgo que a solução para esta
crise de representatividade está na mudança do sistema eleitoral. Só haverá uma
abertura do círculo político nacional se os eleitores escolherem o seu próprio
deputado que os represente e responda por eles no parlamento, como acontece no
Reino Unido, em que se realizam as eleições por escrutínio uninominal maioritário,
com uma só volta, e em que o candidato que recolhe o maior número de votos se
torna deputado. Apenas com um sistema eleitoral deste género, se poderá
estabelecer uma ligação mais efectiva entre o eleitorado e o poder político.
Democracia condicionada
Não poderemos continuar a afirmar
que vivemos uma democracia plena e verdadeira enquanto os Estados estiverem sob
a alçada de organizações financeiras internacionais como o FMI, a OMC, o BM e a
OCDE. Nenhum destes organismos tem legitimidade democrática para impor as suas
vontades aos países com os seus próprios parlamentos, uma vez que os seus
representantes não são eleitos pelos respectivos povos. Vivemos pois uma
democracia falsa e condicionada pelos interesses económicos que vêm dos centros
superiores de decisão. A soberania dos países, que deveria pertencer aos
próprios, ou seja, aos seus povos, está na verdade entregue a estas
instituições financeiras. De que me serve o voto, se o governo que eu elejo é
uma marioneta nas mãos destas organizações?
Democracia e Direitos Humanos
Numa democracia, que pelo
facto de o ser tem que assentar em valores fundamentais como a liberdade e os
direitos dos cidadãos, não se podem tolerar discriminações de cariz meramente
economicista em áreas fundamentais para o cidadão como a Saúde. Miguel Oliveira da Silva, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, informou que o Ministério da Saúde deve limitar
o acesso aos medicamentos mais caros para tratar doenças como a sida ou o
cancro. Afirma – e passo a citar - "vivemos numa sociedade em que,
independentemente das restrições orçamentais, não é possível, em termos de
cuidados de saúde, todos terem acesso a tudo". Questiona ainda: "Será
que mais dois meses de vida, independentemente dessa qualidade de vida,
justificam uma terapêutica de 50 mil, 100 mil ou 200 mil euros?" Parece inacreditável, mas a verdade é que o órgão
consultor para a ética e deontologia médica sugere que se poupe dinheiro
deixando que pessoas doentes morram. Os médicos transformam-se em contabilistas
e os doentes em meros números. A função do médico não é medir o valor
financeiro dos últimos meses de vida de um doente, mas sim, segundo o juramento
de Hipócrates, fazer de tudo para o salvar, tendo em conta - claro - a vontade
do doente e a sua qualidade de vida. Porque a vida, nem que seja um mês de
vida, não tem preço. Ora, este é mais um caso paradigmático de que a garantia
do voto universal não é suficiente para podermos dizer que vivemos em
democracia. O voto dá-nos a possibilidade de escolher um governo mas não nos
garante os direitos fundamentais (como o do acesso à Saúde) que têm que
constituir obrigatoriamente as bases de um estado democrático.
João Miguel Aragão
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