sábado, 27 de outubro de 2012

Mensagem Um


Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa
 MENSAGEM UM

Àqueles a quem, não querendo mal, também especialmente não amam concedem os deuses uma vida fácil e benigna, que os faz, a eles e aos restantes, acreditar em protecção celeste; aos outros, porém, àqueles cuja carreira se vê essencial aos destinos do mundo, vendem os deuses, e bem caro, todos os dons de que os cumularam; e, porventura, o preço mais alto que reclamam de sua mercadoria é o de, a cada momento realmente importante da vida, nada disporem como que de maneira fatal, deixando que o seu amado possa, em plena liberdade, escolher o que mais é de seu agrado; e aqui a maior parte se perde: porque à chama que os tornaria celestes preferem a temperada medianidade que para sempre os prende à Terra.
Começa logo a escolha pela Pátria. Para a grande maioria dos homens, se apresenta a Pátria apenas como um acidente ou um acaso físico: são de onde nascem, e, a pouco e pouco, a convivência dos pais, de seus conterrâneos, mais tarde a Escola e o estado, os dois grandes organismos encarregados essencialmente de não deixar ninguém escapar das malhas do exército social, os vão gradual e realmente convencendo de que não poderiam ter nascido noutro lugar e de que uma escolha futura que livremente pudessem fazer representaria sempre e de qualquer modo uma diminuição ou uma traição. A outros, no entanto, e porque são amados dos deuses, se apresenta o caso de modo diferente: a vida, mostrando à superfície, como circunstância, o que é meditado e deliberado propósito de quem rege a História, os encaminha à escolha que decidirá os seus destinos: o de resplandecer num véu de glória, que é quase sempre, visto por dentro, um véu de lágrimas, ou o de ser jogado fora como um vaso de oleiro que mentiu, pela má qualidade do barro, à diligente regularidade da roda e à inventiva agilidade do gesto. Quem pode, em raro jogo, escolher o seu País por aí mesmo está escolhendo a sua vida: uma vida que dele mesmo se vai alimentar.
Para Fernando Pessoa, cuja existência se iria desenrolar, tanto quanto se poderia prever, no Portugal de seus tempos, isto é, no ponto mais baixo que poderia atingir a descendente curva da austera, apagada e vil tristeza, a alternativa apresentada foi a mais tentadora que se poderia imaginar: a da Inglaterra, e a de uma Inglaterra apreendida na sua história e na sua cultura. Por uma daquelas pequenas resoluções que movem depois as grandes molas, poderia Fernando Pessoa ter passado inteiramente ao domínio inglês e nele se afirmado como um homem de Império, já que o encontro se cumpria na África, ou como um homem de Universidade, já que o encontro era igualmente num ambiente à Walter Pater, com imaginários retratos de Inglaterra elisabeteana mascarando uma outra que apenas procurava colocar seus capitais e manter pela força os seus mercados. Numa ou noutra carreira, teria Fernando Pessoa sido célebre: as críticas a seus poemas ingleses seriam apenas o prenúncio do que outros críticos viriam a escrever; um outro Conrad, noutro domínio, se incorporaria à literatura inglesa; apenas isso, porém.
O que, no entanto, acontecia era que iam mais alto as ambições de Pessoa e penetrava a sua inteligência mais longe do que a dos estadistas ingleses. Era o mundo mais nobre, mais humano e mais divino, do que o supunha a Inglaterra e jamais se resignaria a aceitar como permanente, apesar de todas as suas excelências sobre os outros, apesar de não ter constituição escrita, apesar de tender já a uma Comunidade de nações livres, um império que, na base de tudo, mantinha as duas noções e invenções diabólicas da força e do lucro. No fim de contas, o melhor que a Inglaterra lançava sobre o universo já Portugal o fizera, muito antes dela; e Portugal porque não era de nenhuma Igreja reformada, porque se mantivera fiel a Roma e à fraternidade católica, porque nunca fora sequaz de uma ciência que tendia apenas a dominar, de uma economia que tendia apenas a explorar e de uma política que não era outra coisa senão de origem maquiavélica, deixara aberta, apesar das suas falhas, uma esperança para o futuro: a de que o seu império do mar fora apenas o primeiro passo, por isso mesmo ainda físico e político, de uma acção que depois a Europa, incompreensiva como sempre, lhe viria cortar: a de trazer para o mundo aquele Reino que milhões de homens quotidianamente imploram em vão.
Vai, pois, Fernando Pessoa, deliberadamente, confirmar o acaso físico: vai nascer português porque tem a convicção de que Deus não pode abandonar seu outro povo eleito e de que, passado o domínio da Europa, quando a técnica tiver esgotado todas as suas possibilidades, quando a economia protestante se verificar plenamente anti-humana, quando a centralização estatal se revelar estéril, Portugal virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser o seu sacrifício: mundo de uma paz que não surja como a Romana ou a Inglesa, do exterior para o interior, de um César para os seus súbditos, dos tribunais para os corpos; paz que se realize antes de tudo nas almas, lei que seja inteiramente não escrita e, no melhor de si, informulada; Reino de Deus que surja pela transformação interior do homem.
É como uma justificação e uma explicação deste seu acto fundamental de vida que Fernando Pessoa, pacientemente, vai durante quase duas dezenas de anos escrevendo Mensagem, sem dúvida a mais importante de suas obras plenamente emparelhando com Fernão Lopes, Os Lusíadas, D. João de Castro e a História do Futuro na compreensão do que verdadeiramente é Portugal; pela inteligência e entendimento fundamentais que enformam toda a obra e por ter posto mais claro do que Camões na Ilha dos Amores a concepção de um verdadeiro Império Português ou Quinto Império, veríamos até Mensagem como de importância superior à dos Lusíadas: no total, o não é, porque inutilmente procuramos na obra de Pessoa traços daquela espantosa e eloquente vitalidade de Camões, daquela ígnea personalidade que em si ardendo destruía todos os círculos limitadores que ele próprio ou os outros tentavam traçar à sua volta; a diferença que há entre Camões e Pessoa é a diferença que há entre um homem e a sua inteligência: mas esta, em Pessoa, mais clara e penetrantemente brilhava; foi mais compreensiva quanto ao Passado estático e ao Passado dinâmico, tão incisiva como a de Camões quanto ao Presente e muito mais aguda na previsão do Futuro.
A primeira ideia que nos dá Pessoa é a de que há um certo passado de Portugal que não é de natureza puramente histórica: é apenas uma revelação no passado do que é em Portugal uma perenidade; o apuramento dessa perenidade constitui o conteúdo da primeira parte do poema, aquilo a que Pessoa chamou justamente Brasão, mas que não é para ele brasão de túmulo, ou brasão daqueles palácios em ruínas que foram obsessão de Gomes Leal: o seu Brasão é a nobreza em cerne, é a essência do ser fidalgo de Portugal. Quando agir, será no Passado, a segunda parte do Poema, Mar Português, e, no Futuro, a terceira parte, O Encoberto. Brasão terá como lema Bellum sine bello: é a potência sem o acto, a energia sem a matéria, a História sem o tempo: Deus, vendo Portugal em Si eterno, escreveria Brasão. Mar Português é o acto que não esgota a potência, a matéria que não apaga a energia, o tempo que não liquida a História: por isso é apenas a Possessio Maris que o Poeta lhe deu por lema: é Portugal podendo apenas uma mínima parte do que pode; não se entregando todo e, portanto, apenas possuindo; em Mar Português, Portugal Tem, não É. Em O Encoberto, porém, toda a sua grandeza se revela: e o descerramento desta sua glória é quase a renovação, agora de homens para homens, do clamor antigo dos anjos, quando o Céu fez, por uma Terra que deles se desaviera, o sacrifício supremo de si próprio: Pax in excelsis; paz nas alturas em que o homem, indo além de si mesmo, se faz Santo; não a paz em que o homem, rendendo-se, organiza, explora e defende sua própria baixeza.
Em Brasão, Portugal é o rosto com que a Europa fita um Ocidente que, ao plenamente ser, justificará todo o passado de miséria que a humanidade tiver atravessado; a missão de Portugal não poderá ser outra senão a de resgatar o que a Europa fez e de a salvar a seus próprios olhos; por isso o seu campo, o dos Castelos, é o que serve de base ao das Quinas, o das Chagas de Cristo, este o campo próprio de Portugal: é expirando na cruz, esgotando-se no seu sangue e na sua piedade, que Portugal poderá salvar o mundo. No dos Castelos, porém, Portugal porá, como seu alicerce, o que de mais fundamental a Europa poderá ter dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a realidade, de que o poder vir a ser é o substracto do que é, de que as coisas morrem à medida que são; com Viriato, a de que a verdadeira força propulsora da vida não é a inteligência, mas a reminiscência, e de que o ponto criador não é a definição, mas o pressentimento; com o Conde D. Henrique a de que a acção, se Deus é o agente, se faz para além das intenções e das possibilidades do herói, consistindo o heroísmo apenas em não se recusar o que não se compreende; com D. Tareja, juntamente com a da contemporaneidade do temporal e do eterno, a de que o dever perante a obra consiste em a ela se dedicar com a bruta e natural certeza com que a mãe amamenta a seu filho; com D. Afonso Henriques, a de que, para se vencerem infiéis, só vale uma indefinível arma, que, espinosianamente, tenha como um dos aspectos o da espada e como outro o da bênção, como um, o do corpo, como outro, o do espírito; com D. Dinis, a de que a intuição poética vale mais do que o plano; com o sétimo castelo, o que junta D. João e D. Filipa, o que se afirma é que a História, ao ser, toma dois aspectos: o do homem e o da obra, sendo as modificações de qualquer desses o reflexo das modificações do outro; e ainda, que o milagre da concepção humana consiste em que cada filho, sendo de seus pais, não tem ao mesmo tempo nada que ver com eles: a cada nova geração reafirma o Espírito Santo a liberdade de criar. A Europa em que Portugal assenta não é, felizmente, a Europa cartesiana.
Se a força de alicerce de Portugal vem de ter afirmado a sua existência de uma Europa que duas vezes se perdeu de si própria, primeiro na Idade Média grega, depois na Idade Média Ocidental, a sua força de salvação virá de, voluntariamente, ter incluído em seu brasão as chagas de Cristo, não pintando-as apenas, mas consubstanciando-as em gente sua: primeiro em D. Duarte, o mártir do dever; depois em D. Fernando, o mártir da grandeza de alma, superior sempre a seu destino; e em D. Pedro, o mártir da fidelidade a uma ideia claramente pensada e claramente sentida; e em D. João, o mártir de não querer senão o todo, ou o seu nada; e, finalmente, em D. Sebastião, o mártir do sonho de grandeza que está para além das circunstâncias históricas. Coroando os campos, a santidade activa de Nuno Álvares, a sua pureza guerreira, o halo que no céu gravam suas acções terrestres; e, numa afirmação final da energia que a tudo subestá, o Grifo com sua cabeça de águia adivinhando o mundo como um perfeito globo, ou melhor, obrigando o mundo a ser o globo que pensava; com uma de suas asas rasgando o firmamento num sulco de vontade, com a outra das asas o rasgando num sulco de poder.
Sobre a base teórica de que a vontade de Deus desperta o sonho do homem e de que o sonho do homem provoca o surgimento da obra, e afastando por aí, para explicar a História, tudo o que sejam causas espirituais ou materiais limitadas ao círculo humano, e pondo nitidamente, logo no primeiro poema, que a história que vai contar, a da Possessio Maris, não é a História de Portugal, mas apenas o seu interrompido prólogo, Pessoa dá o que foi o encantamento máximo dos navegadores, o de transformar o abstracto em concreto; o que foi basilar em sua actividade, a convicção de que só em Deus, como último porto de repouso; a vontade de um Rei de carácter sacramental que, faz, ao mais humilde dos homens, poder mais do que todos os medos do mundo; a glória de ter mostrado que o mar é sempre o mesmo e que a sua posse nada significa de vital; o sentimento de que o que vale na empresa de buscar é a busca e não o encontro; o mérito de ter sido o corpo da vontade de Deus, de ter sido o Tempo da Eternidade a revelar; o impulso que irá conduzir a história para além dos que o lançaram; a consciência de se ter realizado, no mundo físico, e sem nisso estar verdadeiramente empenhado, a mais alta façanha de que os homens se podem orgulhar; o ter ensinado que toda a descoberta se faz apenas quando se tem a coragem de passar além dos domínios da alegria e da dor; por fim, em Última Nau e Prece, a certeza de que, embora tenha vindo a noite e seja vil a alma, Deus ainda reserva para o seu povo Distância a conquistar.
É essa Distância como distante, é essa conquista como inconquistável o que, em O Encoberto, se anuncia pelos Símbolos, pelos Avisos, o último dos quais é o do próprio Fernando Pessoa, e se afirma triunfantemente através do negrume dos Tempos. Portugal, completando a sua obra, dará ao mundo o seu íntimo Império feito de anseios, de lonjuras, de Reinos ilocalizáveis em tempo ou espaço, o seu reino de alma humana continuamente sendo e continuamente ansiosa de mais ser, tendo-se inteiramente desprendido das ilusões de uma afirmação puramente pessoal e de uma pessoal felicidade; o mar bate nas costas do Império, mas, se o escutarmos, pára; decerto, porém, um dia, desistindo do nos opormos ao mundo, não mais o quereremos escutar; então, através de todo o nevoeiro, pelo próprio nevoeiro, terá surgido a Hora; o Encoberto, em milagre supremo, se descobrirá.


Mensagem Dois

Sem se mexer, nem sequer por dentro, como dele dizia Álvaro de Campos, Fernando Pessoa agudamente se observa a si mesmo e ao grupinho que com ele tinham formado os três poetas. Era o conjunto de mais penetrante inteligência, de maior capacidade de ironia, de menor provincianismo que jamais se constituía em Portugal; no entanto, tendo tão superiormente ultrapassado a vida, podendo, por exemplo, dizer a um Sá-Carneiro que o não achavam completamente civilizado, podendo tratar a sociedade portuguesa do tempo com o desembaraço, o desdém e a agressividade com que a trataram – apenas, de onde a onde, com algumas ingenuidades, como a de propor Mensagem a políticos cuja característica essencial era a de não serem nem imperiais, nem proféticos, nem épicos mas chapadamente pedestres, retrógrados, locais – o certo era que afinal o meio ambiente acabava por os vencer, com as bebidas, o fumo e os cafés de Fernando Pessoa, o exílio sem glória de Ricardo Reis, a morte prematura de Alberto Caeiro, e é fora de dúvida ser a tuberculose uma doença de ambiente, e o cansaço permanente de um Álvaro de Campos. O que os abatia e afinal os unia num mesmo denominador era essa falta de uma energia que todos louvaram e todos punham como o bem mais desejável de todos os bens, mas que apenas lhe dava para escreverem seus panfletos de várias formas e os comentarem ou comentarem os dos outros à volta das mesas do Martinho.
O grito de ter vindo a noite e de ser vil a alma era afinal o grito de todos, mas nenhum tinha a coragem prática de agir. Era como se o acontecimento histórico que emasculara a Nação os tivesse emasculado também a eles; era como se a Europa socrática e renascentista, vingando-se de todo o desprezo cultural e político a que sempre Portugal a tinha votado; vingando-se daquele soberbo desdém que Fernando Pessoa melhor que qualquer outro exprimira em Mensagem, o desdém pelo estrangeiro que apenas achara o que no encontrar português só por destino não fora achado; vingando-se daquela autonomia religiosa que construiria a Trindade vivida de Santa Maria, o Menino Jesus e o Espírito Santo, em oposição a uma teologia pensada que tanto conservara de judeus, gregos e romanos; era como se ela, entrando na Península pela mão de Carlos V e com o caminho preparado para erros anteriores, tivesse dado o golpe fundamental para acabar de vez com os homens que jamais desprendiam suas mãos do leme ou que tendo na mão a pena somente a manejavam nos repousos da espada ou conservavam debaixo dos buréis os arneses vestidos. E tão separados tinham para sempre ficado os portugueses de seus antepassados que, mesmo quando um acaso interno os lançava aos antigos caminhos, não mais os conheciam: Fernando Pessoa estivera em África e a África se mascarara de Inglaterra; Álvaro de Campos estivera no Oriente e o seu Oriente fora Port Said e não Ormuz, fora um conde francês e não um Fernão Mendes; Alberto Caeiro estivera no Ribatejo e o seu Ribatejo nunca fora o de Giraldo nem o de Alfarrobeira; e Ricardo Reis, partindo para o Brasil, não soubera encontrá-lo.
O poder de esmagar de tal forma o que fora a Nação mais original do Ocidente e a de mais larga e profunda missão em todo o mundo só poderia ter sido dado à Europa por um grande acerto ou por uma grande tentação; para Fernando Pessoa a ideia de grande acerto não poderia existir, poruqe detestava a América do Norte e a Rússia e não podia deixar de vê-las como o perfeito fruto da mentalidade europeia; tinha por conseguinte de se voltar para a ideia de uma tentação diabólica, mais temível do que a de quedas anteriores, e de que a humanidade só possivelmente se veria redimida por um novo sacrifício, provavelmente pelo sacrifício de Portugal como nação. Essa tentação não podia ter deixado de ser a da eficiência, e a da eficiência vista não como serviço prestado aos outros, mas como uma afirmação da própria superioridade: como da outra vez, o Diabo pegara o pecador pelo Orgulho. E passava de coincidência interessante a necessidade lógica que, tendo o palco da nova tentação e da nova queda sido a Alemanha, fosse exactamente Carlos V quem tivesse vindo emascular a Espanha e Portugal; mais a este, como inimigo fundamental porque afinal Castela sempre tivera suas pretensões a Prússia da Península.
O golpe essencial a favor da eficiência tinha sido o de ver a sociedade como uma máquina de produção, em que cada qual tem de ocupar o seu lugar e de se desempenhar de suas tarefas com o máximo de obediência a uma organização central; para que isso se conseguisse tinham-se apurado as instituições estatais, eclesiásticas e escolares pondo-as, no máximo que era possível, ao serviço dos produtores. De todas elas, as que porventura tinham custado maior mal eram exactamente as escolares, porque a sua missão consistia em fazer durar o menos possível a criança, de modo a ter, para produzir, um maior número de adultos: é por isso que é inteiramente errado dizer-se  que, na época de sua revolução industrial tinha a Inglaterra no serviço das minas crianças de cinco anos; o que ela tinha trabalhando era uma coisa muito mais monstruosa: eram adultos de cinco anos de idade.
De então para diante em nada mais se mudou, na grande massa da educação, senão nas técnicas de fabricar adultos pelo assassínio das crianças; a humanidade de jeito ocidental pratica em grande escala o infanticídio do espírito, apenas o punindo quando é físico porque isso lhe rouba definitivamente a matéria-prima do adulto. Aquelas crianças que várias vezes Fernando Pessoa apontou como a melhor coisa que há no mundo, aquele Menino eternamente criança e humano que era Alberto Caeiro o Deus verdadeiro e supremo que faltava no universo, a essas diariamente as sacrificam nas nossas escolas, diariamente as crucificam, diariamente as imolam nas aras da Eficiência. O que permitiu à Europa dominar Portugal, chegando ao extremo de lhe apresentar o que há de mais estrangeiro, de mais alheio à índole nacional, como inteiramente nacionalista, foi o pecado de ter levantado como valores supremos de vida humana os do adulto, o saber, o trabalho e aquela separação de sujeito-objecto que permite a filosofia, a ciência e a técnica. A Europa se vendeu ao Diabo e o dinheiro que nisso ganhou lhe serviu para comprar Portugal.
E, comprando-o, destruiu o último refúgio que ainda poderia haver no mundo para as qualidades distintivamente humanas, as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação; são essas e não as outras as que têm demonstrado os grandes criadores de ciência, os grandes artistas, ou os grandes políticos: por isso os perseguimos quando vivos e os aproveitamos, porque já eficientes, quando seguramente mortos. Não haverá salvação para o mundo enquanto não entendermos e fizermos penetrar me nossas consciências este facto basilar, e enquanto as nossas escolas, transformando-se inteiramente, não forem, em lugar de máquinas de fabricar adultos, viveiros de conservar crianças; enquanto não forem as crianças que nos levem, não pelo caminho que uma ciência fáustica previu, mas pelo que houver, dando a mão, ao mesmo tempo, a nós e às coisas: enquanto não for o Menino Jesus nosso Deus verdadeiro.
É evidente, no entanto, que a escola é apenas um dos elementos de um sistema; a pedagogia está ligada à sociologia, à economia e à teologia racionais por laços muito mais íntimos do que se pensa; tudo são fabricações de adultos. Pensam eles, os pobres, que pode jamais haver no mundo alguma forma satisfatória de governo organizado, de economia organizada ou de discurso do sobrenatural, a não ser que os pensemos sempre dentro de um mundo de adultos: fora dele, num universo de qualidades infantis, num Paraíso, e é por isso, porque os adultos aí eram crianças que não havia crianças como Adão e Eva, e só as houve depois que, para podermos comer e se vestir, principiaram eles a ser adultos, - num Paraíso, todo o governo que não for amar será absurdo, toda a economia que não for colher será absurda, toda a teologia que não for contemplar será absurda.
Poderia parecer que por este caminho se poderia Fernando Pessoa opor a todo o crescimento da técnica; mas é técnico Álvaro de Campos nos melhores momentos de si próprio e, se não exerce a sua profissão, é decerto pelos seus arrebatos melancólicos, mas também porque se não percebe um engenheiro naval num País que não mais constrói navios – embora possa, como a Holanda, fabricar paquetes ou cargueiros: e o grupinho de Pessoa sabe perfeitamente através dele que é exactamente pela técnica, mas pela técnica tomada como um jogo geral e não como um meio individual de ganhar dinheiro ou poder, que pode o homem abrir o seu caminho de regresso ao Paraíso: mas, para tomar a técnica como um jogo, é preciso que se seja anteriormente criança: a conversão religiosa ao Menino Jesus deve preceder a revolução social. O contrário seria materialismo, coisa de padres sem religião, como dizia Alberto Caeiro; o que também se poderia afirmar da religião que avassalou Portugal a partir do século XVI.
Ligando os pecados da Europa ao que foi Portugal antes de a noite vir, poder-se-ia pensar que o D. Sebastião da Mensagem, o Encoberto, o que há-de voltar na manhã de mais cerrado nevoeiro, quando toda a esperança parecer perdida, é ao mesmo tempo o Menino que jamais se resignou a ser adulto no Rei de Alcácer e o Menino que jamais se resignou a ser adulto nos melhores homens do mundo; a grandeza qual a Sorte a não dá seria, não a grandeza deste mundo em que logo se pensa, mas a grandeza do Reino que Jesus afirmava ser o seu e que seria povoado dos pequeninos que a si chamava e que apontava como modelo a seus discípulos; e à volta de D. Sebastião, iniciando no mundo o novo Império, cada homem e cada mulher, redimindo-se de ser adultos, iria oferecer a um Deus também Menino, libertado finalmente de sua Cruz e de seu distante Céu, o seu ramo infantil de contempladas flores.
É por esse Império, que nem ele nem os e seus companheiros têm a coragem ou a força ou a hora de construir, porque numa história movida por Deus tudo vem a ser o mesmo; é por esse Império, que não tem lugar marcado nos mapas porque vive no sorriso, no olhar, nos sonhos dos meninos; é por esse Império, que se tornará consciente ou inconsciente a nós, como se torna consciente ou inconsciente a uma criança o que, dormindo, a faz sorrir; é por esse Império, que só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa; é por esse Império, que já foi aurora de realidade e que hoje é apenas cavo passo que se escuta em palácios desertos, que Fernando Pessoa pensa, escreve, concebe génios, sofre recolhido e ignorado morre. Mas sobre ele reina, como já reinou sobre nós outros, aquele Menino Imperador que, em oposição ao Imperador germânico, o Imperador dos adultos, e iniciando seu Império pela abertura das prisões e pela abundância para os pobres, coroavam, por amor do Futuro, os portugueses do melhor tempo; e que ainda hoje coroam os homens de Santa Catarina, entre os quais vivo e escrevo: aqui, também, esperemos, por amor do Futuro.    

Sem comentários:

Enviar um comentário