Em
“Metamorfoses”, Ovídio propõe uma teoria do princípio do mundo. Segundo Ovídio,
antes da formação do mundo havia apenas caos: uma massa informe e confusa, um
amontoar de sementes diversas, não havia luz, nem mares navegáveis, nem terra
habitável. Todas as coisas se opunham: o frio ao quente, o húmido ao seco, o
mole ao duro. Foi então que Deus (ou uma forma de natureza mais organizada) pôs
termo à disputa entre as coisas, separando a terra do mar, o mar do céu, o céu
da terra. Organizou a terra para que pudesse ser habitada, criou os animais e,
por fim, o homem. Segundo Ovídio, Deus fê-lo à sua imagem para que dominasse
sobre todas as coisas da terra, ideia que está também presente nos Génesis.
Deu-se então
início à Idade de Ouro, tempo em que o homem viveu sem leis e com total
liberdade, mas baseando-se em princípios como a rectidão e a lealdade. Gozava
de uma ociocidade doce, sendo que tudo brotava da terra espontaneamente. Vivia
num género de paraíso e estava muito perto da perfeição divina. Surgiu depois a
Idade de Prata, em que o homem se viu obrigado a cultivar a terra para ter que
comer. Neste período, a Primavera deixou de ser eterna e passou a dividir o ano
com mais três estações, surgindo assim o frio e o calor. Apareceu então a Idade
de Bronze, em que os homens começaram a pegar em armas. Logo de seguida, deu-se
início, por fim, à Idade de Ferro, tempo em que o homem começava a praticar o
mal: surge a traição, a violência, a ambição desmedida, a guerra.
Também nos
Génesis, quando Adão come o fruto proibido, desobedecendo a Deus e, por isso, pecando,
termina o tempo de ociosidade paradisíaca e começa o do trabalho árduo da terra
para dela poder arrancar alimento.
Se
considerarmos as quatro idades, percebemos que a primeira, a Idade de Ouro, é
aquela que está mais próxima de uma espécie de perfeição divina, sendo o tempo em
que o homem, feito à imagem de Deus, se assemelha mais com Ele, enquanto que, à
medida que percorremos as restantes três idades, de Prata, Bronze e Ferro, podemos
aperceber-nos de que o homem se vai afastando gradualmente de Deus e a sua
imperfeição vai sendo cada vez maior.
Se tivermos
isto em conta ao lermos o episódio da Ilha dos Amores, de “Os Lusíadas”,
compreendemos que este corresponde à Idade de Ouro de Ovídio, afirmando-se como
um momento de transcendência das almas dos marinheiros portugueses, de elevação
dos seus espíritos a um plano divino, pela relação tida com as ninfas, elas
próprias seres divinos. A ilha, onde os marinheiros portugueses recebem a
merecida recompensa pelos seus feitos heróicos, surge também como um género de
paraíso, como um lugar de êxtase sexual e, ao mesmo tempo, repleto de paz e
harmonia, onde puderam finalmente encontrar a concretização da sua existência.
Tal como na Idade de Ouro de Ovídio, para os marinheiros portugueses é como se
o mundo tivesse o seu princípio naquele momento.
João Miguel Aragão
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